NOTÍCIA

Sementes Crioulas

Uma revolução com origem

A agricultura nasceu das mãos das mulheres, que realizavam as coletas de sementes e frutos. Quando começaram a plantar as sementes por elas colhidas, conseguiam garantir a alimentação de suas famílias. Com esta memória ancestral, a agricultura familiar camponesa vem mantendo a agrobiodiversidade.

Na região Centro Sul do Paraná o cenário se repete, onde centenas de variedades crioulas de milho, feijão, abóbora, hortaliças, flores e frutas são conservadas e disseminadas para diversos territórios. Dentre estas sementes temos as mais diversas espécies de “miudezas”, como são chamadas no Paraná as sementes pequenas de tamanho, mas gigantes na importância, que são cultivadas nas hortas ao redor das casas. Elas representam a soberania e segurança alimentar e nutricional tanto das famílias guardiãs, que as conservam e multiplicam, quanto das famílias que as consomem.

São diversas as estratégias para garantir a livre circulação das espécies. Temos as feiras de sementes e da agrobiodiversidade, que tiveram início a partir da preocupação das famílias agricultoras guardiãs com a perda de muitas variedades, atrelada ao avanço do pacote tecnológico. A enorme diversidade presente nas feiras é uma expressão da longa trajetória de trabalho e experimentação das famílias na multiplicação, conservação e disseminação de suas sementes. 

Com experiência acumulada pelos anos de trabalho e participação política nas organizações de base da agricultura familiar, em 1999 este trecho da história começa. Um grupo de famílias agricultoras da Comunidade do Pinhalão, no município de União da Vitória, organizaram a primeira feira e troca de sementes crioulas. A partir daí, os encontros ganharam força, sendo realizados em dinâmicas comunitárias, dos municípios e, também, regionalmente.  Hoje já estamos na 19 ª Feira Regional de Sementes Crioulas e da Agrobiodiversidade no território Centro-Sul do Paraná, além das centenas de feiras que se realizaram pelo país afora.   

Milhares de guardiões e guardiãs fazem este tesouro, que são as sementes crioulas, circular livremente nas feiras de sementes, através de trocas e  vendas. No Paraná, a Rede Sementes da Agroecologia (ReSA) é responsável por mobilizar um circuito de feiras que acontecem ao longo do ano em diversos territórios, garantindo a preservação da agrobiodiversidade e a resistência da produção agroecológica. Na 19ª Feira Regional de Sementes Crioulas e da Agrobiodiversidade, que aconteceu em Palmeira entre 25 e 26 de agosto de 2023, mais de 130 expositores de cinco Estados do país compareceram com suas sementes, mudas, produtos da agroindústria familiar e artesanatos.

Há 20 anos vivendo no assentamento Contestado, em Lapa (PR), o agricultor César Luis Kerb, um dos expositores, aperfeiçoou a técnica de guardar sementes na lógica de manter sua autonomia de produção, que é 100% executada em sistemas agroflorestais. Nesta Feira Regional, ampliou seu leque de variedades levando para casa amendoim, cará do chão, duas variedades de mandioca e outras duas de banana: “Estou bem feliz. Pude garimpar muito aqui na feira” explica o agricultor. Ser um guardião de sementes também lhe proporciona uma renda extra.

Desgaste no tecido social e prejuízo a uma prática ancestral

         O conjunto de técnicas que os guardiões e guardiãs de sementes executam em sua rotina acompanham a humanidade há pelo menos 10 mil anos, ligadas ao próprio surgimento da agricultura. A reprodução de espécies de plantas e animais, com base em preferências determinadas pelos humanos, acarretou uma seleção cultural que passou a interagir com a seleção natural dos ecossistemas e, assim, direcionou a evolução biológica das variedades botânicas – configurando o que conhecemos por “domesticação de espécies”.

         Atravessando milhares de gerações de agricultores familiares, comunidades tradicionais e povos indígenas, os processos de conservação e multiplicação das sementes crioulas, base para o melhoramento genético e manutenção da agrobiodiversidade, sobreviveram e evoluíram desde o nascimento da agricultura e só passaram a sofrer ameaças mais severas a partir da década de 60 do século XX.  Com o fenômeno global de difusão de tecnologias no campo batizado de Revolução Verde, uma visão mercantilista passou a dominar culturalmente a produção agrícola, trazendo muitos dilemas para a humanidade. Dentre eles, uma forte ameaça à agrobiodiversidade, que passou a ser substituída por sistemas de produção integrados à indústria, como no caso do tabaco, soja, suínos e aves, entre outros.  

         No caso específico do tabaco, as campanhas da indústria fumageira estimularam em diversos pontos do Sul do Brasil a ocupação integral das terras familiares com a planta, sugerindo a compra dos alimentos, anteriormente cultivados, com o lucro obtido pela safra. A deterioração do vínculo dos agricultores com suas sementes e cultivos agravou-se na década de 70, com a introdução das monoculturas de soja e pinus em grandes propriedades. Já as pequenas propriedades passaram a adotar os fertilizantes, agrotóxicos e sementes comerciais em seus cultivos, causando perda não somente da agrobiodiversidade, quanto da sua própria autonomia na produção.

  Neste contexto temos pouca presença do Estado como agente de regularização do processo, que ao longo do tempo veio encurralando a agricultura familiar. A insuficiência de políticas públicas, quase sempre revestidas de grande burocracia em seu acesso, é um obstáculo para estes agricultores e agricultoras que mantêm e conservam a agrobiodiversidade. Um exemplo substancial ocorre na dinâmica do seguro agrícola, que não cobre danos a cultivos realizados com sementes crioulas. Esta ausência de políticas do Estado vem permitindo que o agronegócio se espalhe no território, inclusive adentrando em muitas organizações da agricultura familiar e órgãos públicos que deveriam estar combatendo o modelo de agricultura predatória e anti ecológico. 

Resistências e multiplicação da agrobiodiversidade    

         As iniciativas de reestruturação da agricultura familiar agroecológica ganharam um impulso vigoroso no início dos anos 2000. A campanha “Sementes: Patrimônio  dos  povos  a  serviço  da  humanidade”, idealizada pela Via Campesina Internacional, foi anunciada em junho de 2002 na Conferência Mundial da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO), realizada em Roma. Dentre os objetivos do movimento estavam a garantia de autonomia de produção das próprias sementes pelos agricultores familiares, o fomento de mecanismos de distribuição de sementes sadias e adequadas a cada ambiente e a incidência política na resistência aos monopólios de propriedade intelectual e de patentes sobre as sementes.

No ano seguinte houve o lançamento formal desta campanha no Brasil, durante o III Fórum Social Mundial realizado em Porto Alegre (RS). Tal acontecimento delimitou um marco em que, a partir dele, diversas organizações da sociedade civil e movimentos sociais passaram a desenvolver ações para salvaguarda, replicação e disseminação de sementes, resgatando o protagonismo dos guardiões e guardiãs que até então estavam invisibilizados. Caracterizado por ser um Estado com uma intensa concentração de terras dedicadas à produção e exportação de commodities, e até mesmo em resistência a este modelo predatório e excludente, o Paraná foi o berço de uma das principais articulações pela soberania da agricultura familiar no país. A partir do crescimento das Festas e Feiras de Sementes em diversas regiões do Estado, e diante da contaminação genética e pagamento de royalties às patentes internacionais por conta da escalada dos transgênicos, foi fundada no município de Francisco Beltrão, no ano de 2015, a Rede Sementes da Agroecologia (ReSA).

         Composta em sua fundação por 16 entidades, movimentos e organizações, a ReSA nasceu para organizar e articular as ações de proteção de sementes que naquele momento começavam a ganhar escala em toda a sociedade. Desde o início a Rede buscava ampliar a visibilidade deste ativismo, ganhando assim capacidade política para o enfrentamento aos desafios enfrentados. Como resultado direto, sua atuação demonstra a viabilidade da Agroecologia como paradigma de produção de alimentos, sendo ainda espaço de acesso à informação e de luta pelos direitos dos camponeses e camponesas, povos indígenas e comunidades tradicionais.

         A alta incidência das Feiras de Sementes em todo o Paraná é outra consequência notável do surgimento da ReSA. Em 2015, ano de sua fundação, foram registrados 5 grandes eventos com este tema no Estado. Em 2016 este número subiu para 11, chegando a 18 em 2017, 22 em 2018, e 25 em 2019. Projetado para chegar a 30 Festas e Feiras de Sementes, o ano de 2020 foi abalado pela chegada da pandemia global. Mas nem por isso os sistemas de circulação de sementes que evoluíam no território deixaram de cumprir suas missões.

Toda esta articulação da ReSA é baseada em comunidades que mantêm e conservam as sementes. Neste contexto destaca-se a Comunidade da Invernada, no município de Rio Azul, onde até a década de 90 era mantido um criadouro de animais em área comum conhecida como faxinal. Neste ano de 2023, a Invernada realizou sua 10ª Feira Municipal de Sementes Crioulas e da Agrobiodiversidade, possibilitando que as 30 bancas de agricultores e agricultoras do território pudessem trocar e comercializar suas sementes e mudas. 

Estratégias de circulação na pandemia

         Como as Feiras tornaram-se o principal instrumento de acesso às sementes crioulas, houve muita preocupação no início da pandemia a partir das restrições de eventos em todo o território nacional. Em busca de soluções para circular as sementes da safra 2019/2020, a ReSA elaborou e executou o Projeto Emergencial de Conservação e Multiplicação da Agrobiodiversidade (PECMAP), criando um elo entre a compra direta das famílias guardiãs e a distribuição às famílias agricultoras. A ação possibilitou a implementação de cultivos que melhoraram a alimentação e a renda familiar, algo impraticável naquele período pelos métodos convencionais, devido ao alto custo dos insumos.

No primeiro ano da pandemia, cerca de 5 mil famílias foram beneficiadas pela iniciativa em 80 municípios do Paraná, distribuídas em assentamentos, pequenas propriedades, comunidades caiçaras e urbanas. Criando uma logística solidária de ampla capilaridade, o projeto logrou atingir 78% das comunidades quilombolas, 70% das indígenas e 60% das faxinalenses do Estado. Em função da extrema vulnerabilidade social enfrentada no período, grande parte das sementes foi convertida em alimentos, deixando enfraquecida a tarefa de multiplicação.

Diante deste cenário e da previsão de longa durabilidade da pandemia, no ano de 2021 um novo conjunto de estratégias foi posto em marcha. Nesta etapa, buscou-se evitar uma possível crise de abastecimento pela baixa circulação de sementes, além de atender as demandas de famílias por geração de renda. A operacionalização desta fase fortaleceu o associativismo, já que os acordos coletivos determinaram como requisito a integração às cooperativas regionais pelas famílias guardiãs que desejassem participar.

Outra medida adotada no território do Centro-Sul do Paraná, e expandida dentro da ReSA, foi o fornecimento de um quilo de amostra de sementes para testes de germinação e, no caso do milho, para testes de transgenia. A preocupação com a pureza do material genético, bem como a garantia da não contaminação transgênica, são premissas fundamentais na atuação das organizações que compõem a ReSA, sendo colocadas em prática por diversos mecanismos, com monitoramento permanente em feiras, festas e nas próprias plantações.

O papel fundamental das mulheres

A importância da contribuição das mulheres na conservação e disseminação de sementes, fato já observado empiricamente nos eventos presenciais, foi sistematizada a partir das estratégias emergenciais organizadas durante a pandemia. Dentre os cereais, os homens foram responsáveis pela circulação de 83% das sementes na primeira etapa do PECMAP, representando 67 variedades de milho, feijão e arroz. Já em relação às hortaliças e PANCs (Plantas Alimentícias não Convencionais), as mulheres foram responsáveis por 63% da entrega e 204 variedades de sementes circuladas. A segunda etapa buscou corrigir distorções na destinação dos recursos, anteriormente beneficiando um maior número de homens, para estimular e recompensar o trabalho das mulheres, garantindo assim um considerável incremento na biodiversidade da nação. 

Presente na 19ª Feira Regional de Sementes Crioulas e da Agrobiodiversidade, realizada em Palmeira, cuidando de um estande com exposição de pacotes fubá, quirera e canjiquinha de milho orgânico, crioulo e livre de transgênicos, a Presidenta do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de São João do Triunfo, Silvia Mara Woiciechowski, é uma das diversas representantes na luta pela agrobiodiversidade que confirmam a incidência e a importância das mulheres nesta missão. Os produtos de alta qualidade ali expostos, com agregação de valor e aumento da validade garantidos pela embalagem à vácuo, são frutos de uma conquista das famílias guardiãs de sementes crioulas.

Na comunidade da Guaiaca dos Pretos, no município de São João do Triunfo, foi construída uma agroindústria para derivados do milho crioulo através de um edital da Fundação Banco do Brasil, executado pela AS-PTA em parceria com organizações da sociedade civil. Além de proporcionar geração de renda com o excedente de sementes produzidas pelos guardiões e guardiãs, o empreendimento tem fornecido esses alimentos saudáveis e nutricionalmente adequados para o consumo de crianças e adolescentes da rede municipal de ensino, através dos programas institucionais como o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).

Os saberes em movimento pelo Coletivo Triunfo

         A região Centro-Sul do Paraná, embora seja um território com forte presença de commodities e tabaco, segue construindo um vasto legado de resistência e sustentabilidade da agricultura familiar agroecológica. Por trás de exemplos como a agroindústria de base cooperativa, existe uma rede de sólidas tramas, cujo início ocorreu em 2009 e se concretizou em 2010. Neste ano foi fundado o Coletivo Triunfo, a partir de uma articulação entre as famílias agricultoras e organizações de base para, inicialmente, viabilizar a participação em programas institucionais de abastecimento, como o PNAE e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA).

Além disso, houve uma profunda reflexão sobre o enfrentamento ao uso de agrotóxicos, especialmente pelo herbicida de nome comercial “Gamit 500” ou Gamitão, como é popularmente chamado. A consequência do uso deste veneno no cultivo do tabaco foi o aborto de frutos como da laranja e caqui e o amarelamento das lavouras vizinhas. Após o caso, as organizações e agricultores se reuniram e, no primeiro ato do Coletivo Triunfo, conseguiram derrubar esse agrotóxico que hoje é proibido para a venda.

  Como método de compartilhamento de saberes, o Coletivo Triunfo reconhece o papel da família agricultora experimentadora, que acumula conhecimentos considerando a observação do meio ambiente e as interações sociais das comunidades onde vivem. Tais saberes populares, tidos como crenças ou mitos pelo saber científico hegemônico, nas mãos do Coletivo fazem uma fusão com os saberes acadêmicos, produzindo assim o que chamam de uma “ecologia de saberes”, em que valorizam a composição cultural das comunidades preservando a diversidade de conhecimento.

As proposições pedagógicas como método de organização do Coletivo Triunfo convergem para uma atuação de formação social, política e prática, dinamizando seus encontros itinerantes no território, explorando as ações dos agricultores e agricultoras e de suas organizações. Desde 2014, o Coletivo é responsável pela operacionalização das feiras regionais de sementes crioulas no Centro-Sul do Paraná, fato que posicionou o Estado como um importante centro de conservação e multiplicação da agrobiodiversidade. Em sintonia com a ReSA, executa um processo valoroso, responsável pela construção e manutenção da agroecologia em diversos territórios que se complementam na execução da tarefa.

         Depois das estratégias emergenciais de circulação de sementes executadas em 2020 e 2021, o ano de 2022 fez rebrotar com força o sistema de Feiras e Festas de Sementes Crioulas no Paraná. Neste ano foram realizados 24 eventos, contando com mais de 600 expositores com participação direta e um público de 24700 participantes. O sucesso do trabalho realizado na pandemia também mostrou-se presente durante as edições deste período, com a massiva presença de mulheres guardiãs que contribuíram para um notável aumento da variedade de sementes quando comparado ao ano de 2019.

A 19ª Feira Regional de Sementes Crioulas e da Agrobiodiversidade, que aconteceu em Palmeira, foi um dos 29 eventos com este tema realizados no ano de 2023 no Paraná. Através de uma pesquisa interna realizada pela AS-PTA, estima-se que nesta Feira houve uma circulação de R$91.468,25, representando uma média de R$36,60 gastos por visitante. Em relação à biodiversidade, o sistema de Feiras e Festas de Sementes paranaenses tem uma circulação estimada de 172 espécies e 495 variedades, entre cereais, hortaliças, tubérculos, mudas medicinais e frutíferas. Em relação às mudas diversas e sementes de hortaliças, estima-se que as mulheres respondem por praticamente toda a circulação verificada.

BOX PAA - SEMENTES

Na busca constante pela valorização da agrobiodiversidade, o Coletivo Triunfo realizou um diálogo com a nova gerência da Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB), e no ano de 2023 conquistou a aprovação de um PAA Doação Simultânea para aquisição de sementes de hortaliças e cereais em um montante de R$ 590.000,00. O PAA é a sigla do Programa de Aquisição de Alimentos, uma política pública do governo federal voltada à agricultura familiar.

Estas sementes serão destinadas a Terras Indígenas do Paraná, beneficiando centenas de famílias. O território do Coletivo Triunfo, através da rede de famílias guardiãs, irá fornecer estas sementes, através de 27 mulheres agricultoras guardiãs e 18 homens agricultores guardiões da agrobiodiversidade.  

Dentre as sementes estão os cereais como milho, arroz, feijão e diversas variedades de hortaliças. Cabe ressaltar que nos anos de 2011, 2012 e 2013 o Coletivo Triunfo foi protagonista na execução dessa mesma política pública, beneficiando 100 famílias que forneceram as sementes crioulas e tendo milhares de famílias beneficiadas com a entrega. Neste momento, a gestão do projeto fica a cargo da CAFPAL - Cooperativa da Agricultura Familiar de Palmeira, organização membro do Coletivo Triunfo.

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